28 fevereiro 2014

Uma viagem

Ao terminar de um dia normal, um jovem normal voltava para sua casa em um ônibus também normal. E normal, nesse último caso, significa lotado de tal forma que não havia espaço para encher os pulmões de ar. O jovem estava em pé, assim como mais cento e cinquenta pessoas. Pelo menos foi o que seu cérebro o fez pensar. É nesse cenário que, ao olhar fixamente para a pessoa que estava sentada a sua frente, ele começou a ter os pensamentos que eu quero compartilhar com vocês, agora.
“A última vez que fiquei tão perto de alguém foi quando eu era um feto”, ele começou, já entrando em devaneio, que, aliás, acontece com certa frequência. “Eu daria tudo pra estar sentado, afinal eu já estou dando mesmo” (Você, leitor, entenderá isso no final do texto). Depois desses pensamentos um tanto quanto bobos – que é outra de suas características –, o jovem tirou o pequeno sorriso do rosto, e, de repente, suas reflexões tornaram-se mais sérias. “Isso me parece muito injusto. Por que algumas pessoas podem viajar sentadas e a maioria tem que viajar de pé?”. A partir daí, certo ódio pôde ser notado em nosso personagem. “O que faz essas pessoas sentadas terem mais privilégios do que as outras?”, continuou, “o pior é que ninguém parece se importar com toda essa injustiça e desigualdade”.
É nesse momento que o jovem passou a ter ideias para solucionar os problemas que, segundo ele, as pessoas não tinham capacidade para reconhecê-los. “Poderiam existir mais bancos em todos os espaços do ônibus: no corredor, perto do motorista, do lado das cadeiras únicas... assim mais pessoas sentariam”. Rapidamente ele percebeu que essa alternativa não funcionaria, pois não teria por onde as pessoas passarem para chegar ao fundo do ônibus. Chamou essa solução de solução utópica.
O jovem continuou seu exercício mental. “Já que não há possibilidade de cadeiras para todos, acho que as cadeiras que existem deveriam ser retiradas. Sobraria mais espaço, e aí sim teríamos igualdade”. A princípio, ele gostou muito de sua ideia. Pensou até em escrever um livro para convocar as pessoas que viajam em pé para lutar por essa causa. De tão convicto, o jovem chamou essa solução de solução científica. Minutos depois, porém, ele notou que não teria o apoio das pessoas que viajam sentadas e notou, também, que não teria nem mesmo o apoio das pessoas que viajam em pé, visto que elas, como qualquer outra, têm o desejo de um dia viajar nas cadeiras. Ele, por um instante, ficou um pouco triste, desistiu da ideia, mesmo sabendo que se escrevesse o livro, devido sua inteligência e capacidade de persuasão, teria seguidores que fariam de tudo para atingir tal objetivo. Ele poderia, também, através de seu livro, convencer as pessoas de que o que elas desejam não é bom para todos. No entanto, ele percebeu que isso seria desonesto, porque não é possível saber o que é bom para uma pessoa melhor do que ela própria.
A sua pouca tristeza foi se transformando em muito ódio. Estava há muito tempo, naquele cenário caótico, buscando outra solução. Ela chegou, quando a bolsa da pessoa que estava sentada a sua frente, devido ao ônibus ter feito uma curva fechada, caiu em seu pé. “Encontrei mais uma solução!”, pensou, “nunca vi uma dessas pessoas sentadas dando lugar a alguém que está há muito tempo em pé; nunca vi nenhuma delas fazendo um ato de solidariedade; nunca vi nenhuma delas sentindo pelo sofrimento alheio. Então, por que não as eliminamos?”. Ele estava tomado pelo ódio, seus olhos estavam vermelhos de raiva. Chamou essa solução de solução real. “Desse modo, aqueles que viajam em pé me apoiariam, e não teria quem seria contra. O único problema seria convencer as pessoas de tal ato”.
Alguns segundos após esse último pensamento, a jornada finalmente chegou ao fim. E em seguida, nosso jovem, depois que sai um rapaz afrodescendente que passou a viagem inteira com seu órgão exclusivamente masculino atrás dele, acorda de seu devaneio e percebe o quão absurdo foram as ideias que ele teve durante todo esse período.
Nesse momento, você deve estar se perguntando como eu sei disso tudo. Eu te respondo dizendo que foi ele que me contou toda a história. Agora, não sei se explico aqui claramente os motivos que fazem dessas soluções – da utópica à real – serem um absurdo e completamente idiotas, afinal, não estava nem com vontade de contar essa história a vocês... Vou decidir por não explicar. Fim.